Por José Higino
A fazenda “São José”, no município de Tarauacá, sempre foi considerada exemplo em termos de organização, além de muito visitada, tanto pelas pessoas da cidade, como por aquelas vindas de fora, podendo dizer-se que, mesmo entre as mais importantes personalidades que passaram, na época, pelo município, poucas foram aquelas que não estiveram por lá. Dentre as mais antigas, lembro-me do Coronel Mâncio Cordeiro Lima, isso quando eu ainda era menino, o qual, tendo vindo de Cruzeiro do Sul, liderando uma caravana política do partido Autonomista, em 1934, juntamente com seus correligionários, visitou a propriedade, ficando quase uma tarde inteira conversando com meu pai, certamente devido a afinidade existente entre ambos, como pecuaristas que eram, sendo ele, à época, segundo diziam, possuidor de um rebanho de mil cabeças de gado no município, enquanto meu pai era, ainda, apenas um principiante.
Um outro, entre os mais antigos visitantes, era o Dr. Rafael Dornelas Câmara, promotor público e chefe político do partido da Chapa Popular, que, com sua esposa D. Nini, além de compadres e amigos dos proprietários, eram grandes apreciadores dos leitões assados de forno e do doce de leite, uma deliciosa especialidade da dona da casa.
O Juiz de Direito. Dr. Silveira de Castro, homem de grande cultura, era assíduo freqüentador da fazenda, inclusive para solver, pela manhã muito cedo, na hora do deleitamento das vacas, vários copos do saboroso leite mungido, depois do que percorria vários quilômetros de campo, munido de um longo cajado, fazendo o seu Cooper.
O Coronel Oscar Passos, quando deputado federal pelo território, e seu correligionário Dr. José Ruy da Silveira Lino, ambos com suas respectivas esposas Iolanda e Nini, também estiveram por lá, ao tempo em que este articulista, temporariamente, dirigiu a propriedade, nos anos 50, onde foram homenageados com um almoço.
Dr.Mário Strano e sua esposa D. Odete, quando este foi promotor no município, também almoçaram, na mesma época, com este articulista.
Dr. José Lourenço Furtado Portugal, nas suas andanças assistenciais pela redondeza, como bom católico que era, pelo menos uma vez por semana passava por lá, ocasiões em que conversava, quase sempre, longamente com meu pai. Tempos depois, ao tomar conhecimento de que a fazenda havia sido vendida, não deixou de manifestar sua opinião sobre o assunto, dizendo: “A fazenda nunca mais será a mesma”, referindo-se a pouca visão do novo proprietário e ao seu inferior nível social.
Por último, para não engrossar muito a lista - e isso sem falar nas multidões que, nos dias do aniversário do proprietário (21 de outubro) compareciam em massa ao local -, queremos citar, com muito orgulho, o nosso grande mestre Dr. Jorge Arakem Faria da Silva, quando Juiz de Direito do município, num momento, por sinal, em que a fazenda já vivia a sua última fase e quando apenas o meu pai, ainda se encontrava por lá. Ainda hoje, quando ele tem oportunidade de falar sobre o assunto, não economiza palavras de elogios, sobre a forma fidalga como foi tratado, na ocasião, pelo velho patriarca.
A proximidade da fazenda com a cidade (pouco mais de um quilômetro) favorecia essa visitação. Ademais, a propriedade se situava à margem de um grande lago, conhecido, em toda região, como lago da “Intendência”, o qual, pela sua beleza, tornava o local aprazível e um verdadeiro ponto turístico.
A fundação da fazenda data do ano de 1926, quando o piauiense José Higino de Sousa, chegado a Tarauacá em 1917, depois de experimentar várias formas de ganhar a vida, decidiu-se pela atividade pecuária, valendo-se, para tanto, da experiência trazida de sua terra natal, contrariando, desta forma, a atividade então predominante ou mesmo exclusiva da região, que era a extração gumífera. Ao anunciar, na ocasião, sua idéia de se dedicar à criação de gado, os amigos chamaram-no de louco, dizendo que, pelo fato de não existirem campos naturais como no Sul e no Nordeste, a região não se prestava a esse tipo de atividade, uma vez que estes – os campos - teriam que ser feitos a braço, o que os tornaria muito dispendiosos.
Durante mais de quarenta anos, grande foi a importância da fazenda para a população da cidade e o desenvolvimento do próprio município, especialmente no que se refere ao fornecimento de produtos de origem animal, como o leite, a carne e o queijo, sem falar que de lá saía também a madeira para construção, palha para cobertura de casas - muito usado na época -, lenha para uso doméstico e o funcionamento das velhas caldeiras, tanto da Usina de Luz, como da Estação Telegráfica. O lago, por sua vez, não sendo embora de grande piscosidade, dele muitas pessoas conseguiam, diariamente, tirar o suficiente para o seu sustento e de suas famílias.
Casado com D. Bárbara Ribeiro de Sousa (D. Mocinha), com ela o proprietário teve nove filhos (cinco homens e quatro mulheres), Dulce e Dalva, as mais velhas, nascidas na cidade e os demais: José, Delna, Delza, Luís, Sansão, Edigard e Édson, nascidos naquele lugar, onde todos cresceram ajudando os pais nas lides da fazenda, sem se descurarem dos estudos, ali mesmo iniciados na Escola Virgulino de Alencar, da municipalidade, passando depois para o Grupo Escolar “João Ribeiro” e colégios particulares daquela cidade. Por falta de ensino além do primário no município, com exceção deste articulista que, por ser retardatário nos estudos, é produto final da nossa querida UFAC, todos os outros completaram os estudos, inclusive em nível superior, em centros como Manaus e Rio de Janeiro.
Além dos transtornos causados, periodicamente, pelas grandes alagações, por duas vezes a fazenda enfrentou escassez de mão-de-obra para a sua conservação. A primeira quando ocorreu, no município, um grande interesse pela exploração madeireira por parte das serrarias de Manaus, ocupando essa atividade um grande contingente de mão-de-obra. A outra, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, com a súbita valorização da borracha e a conseqüente corrida para os seringais.
A fazenda perdurou até os anos setenta, quando o seu fundador, que lá já vivia sem a família, passou a outro a propriedade, indo morar com um dos filhos em Manaus, onde faleceu três anos depois, aos 80 anos de idade, 53 dos quais vividos no Acre e destes, 44 dedicados àquela propriedade. Graças ao seu pioneirismo e também ao grande incentivo que sempre deu a outros criadores, presenteando, muitas vezes, animais para o início de suas criações, pôde levar com ele a satisfação de saber que, de acordo com as estatísticas, o município de Tarauacá, na ocasião, era o único do Acre auto-suficiente em carne bovina, uma vez que até Rio Branco, até em tão, era abastecido com gado vindo da Bolívia por dentro da mata, com muitos dias de viagem.
Não poderia deixar de dizer, também, que ali, vivi com minha saudosa e inesquecível esposa Maria José Gomes de Sousa, os primeiros anos de casado, um período de nossas vidas marcado por muito trabalho, tendo nascido também lá, nossas duas primeiras filhas, Jeanett e Jeize, enquanto que a caçula de nome Janne, já nasceu na cidade de Rio Branco.
Em 1994,depois de decorridos mais de vinte anos desde que a outro fora passado o domínio da propriedade, e quando desta já não mais existia nenhum vestígio, tive a oportunidade rever o local e, lamentavelmente, pude constatar que, àquela altura, somente as poucas pessoas ainda existentes no município que conheceram a ambos – o lago da “Intendência e a propriedade -, vendo o que de um e outro restava, guardava ainda na memória, o que foram no passado, bem como a importância que tiveram para a vida e o desenvolvimento de Tarauacá.
O lago tinha suas águas cobertas por um plano e espesso manto verde, que lhe cobria toda face, mais parecendo um campo abandonado, onde a natureza, por todos os lados, apressava-se em reaver aquilo que lhe fora tomado, nada deixando a desejar em relação ao velho lago serrado do “Surué”. O seu desdino não foi diferente ao de tantos outros que, não sendo menos conhecidos dos tarauacaenses, caminhavam, inexoravelmente, para o desaparecimento. Assim foi no passado com os lagos do “Corcovado”, do estirão do “Paraíba”, das “Oito Praias” e tantos outros que, surgidos um dia pelas mãos prodigiosas da natureza, pela ação ao mesmo tempo implacável desta, deixarão, irremediavelmente, de existir.
Quanto a propriedade, encontrei apenas um pé de cedro por mim plantado próximo ao barracão, durante a minha infância. Embora já destroçado, em parte, pela fúria de um raio, ele ali estava ali, para lembrar ao caminhante, do alto de sua copa e sobre um emaranhado de arbustos e vegetação rasteira de toda espécie, o que no local existiu em outros tempos e que, por mais de quarenta anos, teve tanta vida e prosperidade, pois, também lá, a natureza não foi complacente, ao demonstrar, de forma bastante contundente, a transitoriedade do homem e das coisas sobre a terra.
Do lago, jamais será ouvido, como outrora, nas claras noites de lua, o tarrafear monótono dos pescadores.
Da propriedade, tampouco, ecoará pelos campos, o saudoso e plangente aboio dos vaqueiros.
Afinal de contas, tudo passa sobre a terra. É o que já dizia o grande Alencar, em seu poema em prosa “Iracema”, ao se referir ao triste fim da bela selvagem da tribo dos Tabajaras, que, por ocasião da colonização, habitava as longínquas e onduladas terras do sertão cearense.